Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 14
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 14
Despedidas em Belém: “Por perdidos as gentes nos julgavam…”
[…] Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres cum choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrecentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
Qual vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu tinha
Só pera refrigério e doce emparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mi te vás, o filho caro,
A fazer o funéreo encerramento
Onde sejas de pexes mantimento?»
Qual em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?»
[…] Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, IV, 89-91; 93
Ainda a propósito dos 500 anos da morte de Vasco da Gama, que ocorreu no último dia 24 de dezembro, impõe-se uma breve visita à grandeza heroica do seu feito como capitão-mor da armada que, pela primeira vez, ligou a Europa à Índia.
Comecemos pela partida, a 8 de julho de 1497, um sábado. Uns cento e setenta homens, entre soldados e marinheiros, aparelharam “a alma pera a morte” (IV, 86), comungando e pedindo a proteção de Deus, e, depois, dirigem-se em procissão da capela de Nossa Senhora de Belém para os batéis, que os conduziriam às três caravelas.
“A gente da cidade” (IV, 88) enche o areal, num ambiente tenso e sombrio. São as despedidas de quem parte “pera buscar do mundo novas partes.” (IV, 85).
“Por perdidos as gentes nos julgavam” – diz Vasco da Gama. E, entre a dor mais atroz, surgem
“As mulheres cum choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrecentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.”
Neste ambiente na Praia das Lágrimas, como lhe chamavam à época, Vasco da Gama, para evitar males maiores, toma uma decisão:
“Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado.”
Mas este é apenas o peso inicial. Com a viagem no alto-mar, surgiam os enjoos, a ansiedade e o pânico do desconhecido, novos climas e doenças assustadoras, fenómenos naturais tenebrosos, tempestades, “naufrágios, perdições de toda a sorte” (V, 44). E também a fome e a sede e os encontros e desencontros com os povos indígenas e os ataques e outros acidentes…
No canto V, Vasco da Gama resume ao rei de Melinde – e a cada um de nós – todos estes tormentos:
“Ora imagina agora quão coitados
Andaríamos todos, quão perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não sabidos!” (V, 70)
A viagem da armada de Gama até Calecute constitui um marco histórico, com um notável impacto aos mais diversos níveis. Mas teve um preço muito elevado, nomeadamente, em termos humanos.
Num tom épico-lírico, Fernando Pessoa imortalizaria, em pleno século XX, a grandeza de toda esta gesta com o poema “Mar Português” (in “Mensagem”):
“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
Vale a pena ouvir – e cantar – este poema, acompanhando Mafalda Arnauth e os “Milladoiro”. O tema faz parte do álbum "A Quinta das Lágrimas" (2008).
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 13
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 13
“Mandas-me, ó Rei, que conte…”
Prontos estavam todos escuitando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, despois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assi dizia:
– «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
Que outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa é que se costuma e se deseja;
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, pera dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.
Além disso, o que a tudo, enfim, me obriga
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há de ficar inda por dizer.
Mas, porque nisto a ordem leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro tratarei da larga terra,
Despois direi da sanguinosa guerra. […]»
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 3-5
É neste início do canto III que o “sublime Gama” assume o papel de narrador, contando – ou melhor, cantando – ao rei de Melinde a História de Portugal e da viagem, de que ele próprio era o “valeroso capitão”.
Neste porto seguro do Índico, Vasco da Gama trata primeiro “da larga terra”, em seguida, da “sanguinosa guerra” e, por fim, da viagem da sua armada, desde Belém até Melinde, onde se encontram, dando corpo aos cantos III, IV e V.
O herói de “Os Lusíadas” é “o peito ilustre Lusitano / a quem Neptuno e Marte obedeceram” (I, 3). Mas o acontecimento maior que serve de eixo a toda a narração é a viagem de Vasco da Gama (1469-1524), que, “por mares nunca de antes navegados” (I, 1), deu novos mundos ao mundo, ao chegar a Calecute, na Índia, a 20 de maio de 1498, na mais longa viagem oceânica até então realizada.
Não deixa de ser curioso que esta figura central da epopeia tenha morrido, precisamente, no ano em que Camões nasceu. Foi a 24 de dezembro de 1524 – fez no dia de Consoada 500 anos – que faleceu em Cochim, na Índia, onde desempenhava o cargo de vice-rei.
Umas quatro décadas e meia depois, os Gama e Camões voltam a cruzar-se, quando o poeta preparava a publicação de “Os Lusíadas”, obra que imortalizaria, entre outros, os feitos do “valeroso capitão”.
Procurando um mecenas para a impressão do livro, Isabel Rio Novo escreve que Camões, “segundo todas as probabilidades, foi primeiro bater às portas da família Gama. […] Mas os Gama não atenderam o seu pedido.” A este propósito, a autora recorda ainda que o “biógrafo inglês Richard Burton evocava uma anedota, segundo a qual, numa altura em que alguém citara ‘Os Lusíadas’ como honrando o nome dos Gama, um descendente do descobridor tinha exclamado: ‘Temos os títulos e não queremos os elogios.’”
Enfim! Razão tinha o poeta para lamentar, no final do canto V, que “quem não sabe arte não na estima” (V, 97), criticando os seus contemporâneos, porque desprezavam as letras, a arte em geral.
Mais: os Portugueses são “tão ásperos”, “tão austeros, / tão rudos e de engenho tão remisso” (V, 98), que nem se preocupam minimamente com esta sua pobre condição.
Pois… Era assim, há 500 anos!
A Organização
Bibliografia: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 460.
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 11
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 11
Camões: Embarca Engenho e Arte – “Perdigão perdeu a pena”
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.
Luís de Camões, “Lírica”, fixação de texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 114.
Este é um vilancete que trata o tema do amor não correspondido ou impossível, ao mesmo tempo que estabelece um contraste entre o sonho e a realidade…
Num tom espirituoso, o poema explora, num jogo de palavras, a riqueza polissémica do vocábulo "pena", considerando as suas virtualidades semânticas: por um lado, a “pena do voar”, isto é, o sonho, e, por outro, a “pena do tormento”, ou seja, a realidade, para já não falar na “pena”, símbolo da escrita.
Numa primeira abordagem, descreve-se a tentativa fracassada de uma ave, um perdigão, em voar até um “alto lugar”, como “uma alta torre”. Ao falhar, cai e fica sem penas, isto é, “desasado”, “(…) E, vendo-se depenado, / De puro penado morre”, sofrendo as consequências da sua ambição desmedida, ao tentar ultrapassar os seus limites.
Acontece que, em muitas culturas, “perdigão” – ou perdiz – é símbolo do apelo do amor, da mulher. E, na tradição cristã, representa a tentação, a perdição.
Numa leitura alegórica, o poema sugere, por isso, um amor não correspondido e critica, jocosamente, a ambição desmedida.
A perda das penas da ave representa a perda do sonho de voar – de subir em pensamento “a um alto lugar” – e a consequência da sua ambição:
“Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.”
O eu poético verifica, assim, que a realidade prevalece, que o sonho alimentado é impossível, que o amor desejado é inatingível e que a dor que a queda e o reconhecimento trazem consigo ganha…, ganha a pena do tormento.
O ato de escrever representado pela pena, utensílio de escrita, alia-se a essa outra pena, a do sofrimento de um amor impossível.
Esta é uma situação que nos traz ao pensamento os amores proibidos, impossíveis, de Camões, que lhe causaram tantos dissabores na vida…
Deixamos o convite para escutar o vilancete cantado por Amália Rodrigues, com música de Alain Oulman. Faz parte do álbum “Cantigas numa Língua antiga” (1977).
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 12
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 12
Camões: Embarca Engenho e Arte – “Dos Céus à terra desce a mor beleza”
Dos Céus à terra desce a mor beleza,
Une-se à carne nossa e fá-la nobre;
E, sendo a humanidade dantes pobre,
Hoje subida fica à mor alteza.
Busca o Senhor mais rico a mor pobreza
Que, como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por elas o mesmo Céu despreza.
Como Deus em pobreza à terra desce?
O que é mais pobre tanto lhe contenta
Que só rica a pobreza lhe parece.
Pobreza este Presépio representa.
Mas tanto, por ser pobre, já merece
Que quanto é pobre mais, mais lhe contenta.
Luís Vaz de Camões, “Lírica Completa II. Sonetos”, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1980, pp. 286-287.
A poucos dias da Festa do Natal, partilhamos este belo soneto, “Dos Céus à terra desce a mor beleza”, apesar de a sua autoria camoniana não ser consensual.
Diante do presépio, ou seja, do curral ou da manjedoura onde, segundo o “Evangelho de Lucas”, Maria deu à luz, “porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7), o sujeito poético reflete sobre o acontecimento natalício, defendendo “que Deus desce à terra em pobreza e, ao humanar-se, torna nobre toda a Humanidade.”
Por outras palavras, Deus faz-se homem para que o homem recupere horizontes de grandeza divina, a ponto de poder chamar-se filho de Deus…
Esta ideia é também sublinhada na primeira estrofe de um outro soneto, igualmente de autoria camoniana duvidosa:
“Desce do Céu imenso, Deus benino,
Para encarnar na Virgem soberana.
‘Porque desce divino em cousa humana?’
‘Para subir o humano a ser Divino.’”
A tónica dominante do poema é, no entanto, de âmbito social e tem a ver com o desafio da pobreza, ou melhor, do despojamento.
“O Senhor mais rico” procura voluntariamente a pobreza e troca o Céu pelas “palhas vis” com que se cobre:
“Como Deus em pobreza à terra desce?
O que é mais pobre tanto lhe contenta
Que só rica a pobreza lhe parece.”
Na opinião de especialistas da lírica de Luís de Camões, esta será uma poesia da última fase literária do artista, marcada já “pelo fervor da Contra-Reforma“ e “muito distante da fase petrarquista”.
Em plena quadra festiva, Camões continua a embarcar Engenho e Arte…
Feliz Natal!
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 10
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 10
Camões: Embarca Engenho e Arte – “Esta é a ditosa pátria minha amada”
“Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.
Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antão os íncolas primeiros.”
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, III, 20-21.
Depois de traições, armadilhas, tentativas de destruição e outros perigos vividos na Ilha de Moçambique, em Quíloa e em Mombaça, a armada de Vasco da Gama encontra, finalmente, um porto seguro em Melinde, onde os Portugueses são calorosamente recebidos.
O rei local acolhe-os em festa e pede a Vasco da Gama que lhe fale de Portugal e da nossa História. É isso mesmo o que ele faz, tratando primeiro “da larga terra” e, em seguida, da “sanguinosa guerra”.
Após a descrição da Europa, chega à localização geográfica de Portugal:
“Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.”
E continua com o verso emblemático, que abre a estância 21 do canto terceiro: “Esta é a ditosa pátria minha amada (…).”
O termo “pátria” tem origem etimológica no latim (“pater, -tris”) e remete não só para a ideia de “pai”, mas, sobretudo, para o conceito social e respeitoso de antepassado ou antepassados, a quem devemos um património, que importa honrar.
São eles os heróis, de uma família e de um povo… E, neste contexto, ocorre, de imediato, um outro verso famoso do canto oitavo, em que Paulo da Gama apresenta ao Catual da cidade indiana de Calecute, num tom solene, figuras grandes da história portuguesa e sintetiza a admiração e o respeito de um povo pela figura de Dom Nun’Álvares Pereira, referindo “Ditosa pátria que tal filho teve!”.
Foi ele, de facto, quem, em plena crise de 1383-1385, “quando a independência da pátria estava presa por um fio ténue”, tomou “sobre si a tarefa hercúlea de tudo assumir sobre seus ombros – a imagem remete necessariamente para Hércules que, traído por Atlas quando dele se aproximou para saber do paradeiro das Hespérides, aceitou tomar a seus ombros o globo terráqueo” (Aires A. Nascimento).
A par desta visão épica de Portugal, outras há com forte pendor negativo e de profundo desencanto.
Jorge de Sena, por exemplo, no poema "A Portugal" (1961), não hesita em recusar a pátria, que não é a mátria de Eduardo Lourenço, mas antes a madrasta:
“Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de ter nascido dela.”
E a revolta do poeta termina em apoteose:
“(…) és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço, mas ser's minha, não.”
Para Jorge de Sena, Portugal não é a mátria lusitana exaltada n’“Os Lusíadas”, mas, antes, a madrasta que provoca desencanto.
384 anos depois da Restauração ou Aclamação da Independência, a 1 de dezembro de 1640, Portugal continua um desafio à cidadania de todos e de cada um de nós. Até porque permanece lapidar o verso final do poema “Infante” (“Mensagem”, 1934), de Fernando Pessoa: “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”.
A Organização