Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 17

Terça, 04 fevereiro 2025

Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 17

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“(…) um bicho da terra tão pequeno?”

(…) Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho da vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!

No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Luís de Camões, “Os Lusíadas”, I, 105-106

A narração n’”Os Lusíadas” principia com a armada de Vasco da Gama a meio da viagem (“in medias res”), já a chegar à Ilha de Moçambique, onde faz escala para se abastecer.

A partir daqui, assiste-se a um conjunto de atribulações, com ciladas, falsidades e traições que quase deitam tudo a perder, não fora a intervenção de Vénus.

Na Ilha de Moçambique, o chefe local, quando verifica, inspirado por Baco, que os Portugueses são cristãos, resolve destruí-los. E Gama, depois de ter sido atacado, traiçoeiramente, é enganado e recebe a bordo um piloto, com ordens para levar a armada a cair numa cilada.

Ao aproximarem-se da perigosa zona de Quíloa, Vénus afasta-os da costa por meio de “ventos contrários”, anulando, assim, a traição. O piloto mouro ainda faz outras tentativas, mas Vénus está atenta e impede que isso aconteça. A viagem continua para Norte e chegam à cidade de Mombaça, cujo rei fora avisado por Baco para os exterminar.

Face a tantas traições e a tantos perigos – ciladas, hostilidade disfarçada que ilude e alimenta esperanças –, o poeta não resiste a uma reflexão.

Termina o primeiro canto com uma consideração sobre a imprevisibilidade e a insegurança da vida e a fragilidade da condição do ser humano, “um bicho da terra tão pequeno”…, exposto a todos os perigos e incertezas e vítima indefesa do “Céu sereno” (I, 106).

Os perigos espreitam o ser humano (o herói), tão pequeno diante das forças da natureza, do poder da guerra e dos traiçoeiros enganos dos inimigos. Estamos no início da epopeia. Ver-se-á, no último canto, o décimo, até onde a ousadia, a coragem e o desejo de ir sempre mais além podem levar o “bicho da terra tão pequeno”…

Curiosamente, Camões repete este verso emblemático na canção “Junto de um seco, fero e estéril monte”, em que o sujeito poético reflete sobre a sua própria condição:

(…) Somente o Céu severo,
As Estrelas e o Fado sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recreiam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno. (…)

Quase cinco séculos passados, Camões continua intemporal, vivo e inspirador na análise da condição humana, na sua insegurança, fragilidade e contingência.

No século XVI e nos dias de hoje, Camões embarca Engenho e Arte!

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