Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 20

Terça, 25 fevereiro 2025

Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 20

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Episódio do Velho do Restelo

2425 camoes20 01Mas um velho, d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d'experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

[…] Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
2425 camoes20 02Não segue ele do Arábio a Lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!”.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, IV, 94-95; 100-101.

O “Velho do Restelo” constitui um episódio eloquente d’”Os Lusíadas”, com uma fortíssima mensagem política e filosófica.

Na Praia das Lágrimas, em Belém, no momento em que a armada de Vasco da Gama se preparava para zarpar, Camões coloca na boca de um “velho, d' aspeito venerando,” uma crítica muito forte em relação a tudo o que se está a passar: censura a “glória de mandar” e a “vã cobiça”, responsáveis por “mortes”, “perigos”, “tormentas”, “crueldades”, “desemparos”, “adultérios”, consumição “de fazendas, de reinos e de impérios”.

Pela boca do velho, o narrador aproveita, assim, para questionar a estratégia da expansão marítima até ao Oriente, manifestando, em alternativa, a predileção de determinados setores da sociedade portuguesa pela política africana: “Não tens junto contigo o Ismaelita / Com quem sempre terás guerras sobejas?”.

Esta é também a posição de Camões, apresentada na dedicatória ao rei D. Sebastião e nas estâncias finais d’”Os Lusíadas”, da nobreza e de uma parte da intelectualidade, na esteira de “Gil Vicente, Sá de Miranda, João de Barros, Damião de Góis ou António Ferreira.”

Ficcionalmente, este episódio acontece a 8 de julho de 1497. Na verdade, foi escrito mais de meio século depois, de tal maneira que, quando “Os Lusíadas” são publicados, em 1572, esta é uma aposta geoestratégica com muito peso.

À época, as dificuldades na Ásia portuguesa eram gritantes e a instabilidade dominava no Norte de África, situação que nos obrigava a estar muito vigilantes, não só quanto às praças que ainda nos restavam em Marrocos, mas até em relação ao próprio Algarve.

Neste contexto – escreve Isabel Rio Novo –, “o fanatismo do jovem rei e a sua obsessão pelo espírito de cruzada, cuidadosamente alimentada por uma certa franja da nobreza, foram, talvez, uma necessidade do tempo, com a qual Camões estaria essencialmente de acordo. Até porque, de certo modo, o projeto da conquista africana constituía uma possível solução para o beco sem saída em que a Índia se estava a tornar. Era o caminho que o Velho do Restelo apontava, contrapondo à conquista de um império comercial longínquo, consumirdor de ‘fazendas’ e de ‘reinos’, a possibilidade de ‘guerras sobejas’ contra um inimigo que estava ali ‘às portas’ e que era urgente combater.”

A expedição acabou mesmo por se realizar. Diogo Bernardes foi escolhido para acompanhar e cantar a vitória dada como certa. Camões também o desejou, mas não o conseguiu. Só que o sonho glorioso redundou na tragédia de 4 de agosto de 1578, em Alcácer Quibir…

“Assim que recebeu a notícia da derrota e da morte do rei, [Camões] rasgou as estâncias que tinha encetado quando a armada de D. Sebastião largara do Tejo. Quanto ao poema de Diogo Bernardes, não chegou a ser começado, porque o autor foi um dos prisioneiros”…

Tempos sombrios da História de Portugal. E também de Luís de Camões e do barquense Diogo Bernardes.

Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia
de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 446, 467 e 544.

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