Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 11
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 11
Camões: Embarca Engenho e Arte – “Perdigão perdeu a pena”
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.
Luís de Camões, “Lírica”, fixação de texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 114.
Este é um vilancete que trata o tema do amor não correspondido ou impossível, ao mesmo tempo que estabelece um contraste entre o sonho e a realidade…
Num tom espirituoso, o poema explora, num jogo de palavras, a riqueza polissémica do vocábulo "pena", considerando as suas virtualidades semânticas: por um lado, a “pena do voar”, isto é, o sonho, e, por outro, a “pena do tormento”, ou seja, a realidade, para já não falar na “pena”, símbolo da escrita.
Numa primeira abordagem, descreve-se a tentativa fracassada de uma ave, um perdigão, em voar até um “alto lugar”, como “uma alta torre”. Ao falhar, cai e fica sem penas, isto é, “desasado”, “(…) E, vendo-se depenado, / De puro penado morre”, sofrendo as consequências da sua ambição desmedida, ao tentar ultrapassar os seus limites.
Acontece que, em muitas culturas, “perdigão” – ou perdiz – é símbolo do apelo do amor, da mulher. E, na tradição cristã, representa a tentação, a perdição.
Numa leitura alegórica, o poema sugere, por isso, um amor não correspondido e critica, jocosamente, a ambição desmedida.
A perda das penas da ave representa a perda do sonho de voar – de subir em pensamento “a um alto lugar” – e a consequência da sua ambição:
“Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.”
O eu poético verifica, assim, que a realidade prevalece, que o sonho alimentado é impossível, que o amor desejado é inatingível e que a dor que a queda e o reconhecimento trazem consigo ganha…, ganha a pena do tormento.
O ato de escrever representado pela pena, utensílio de escrita, alia-se a essa outra pena, a do sofrimento de um amor impossível.
Esta é uma situação que nos traz ao pensamento os amores proibidos, impossíveis, de Camões, que lhe causaram tantos dissabores na vida…
Deixamos o convite para escutar o vilancete cantado por Amália Rodrigues, com música de Alain Oulman. Faz parte do álbum “Cantigas numa Língua antiga” (1977).
A Organização