Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 24
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 24
“Camões: Embarca Engenho e Arte” – O poder corruptor do “vil interesse” do dinheiro
Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
[…] Este rende munidas fortalezas;
Faz tredoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, VIII, 96; 98-99.
Na parte final do canto VIII d’”Os Lusíadas”, a permanência da armada de Vasco da Gama em Calecute, na Índia, sofre um revés. Instigados por Baco, os locais revoltam-se contra os Portugueses e, neste contexto, aparece o poder do dinheiro.
O Catual, um alto funcionário público nestas paragens do Oriente, deixa o Capitão regressar às naus e partir em liberdade, mas a troco de um conjunto de mercadorias.
A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos navegadores, o Poeta refere um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada para o materialismo, fazendo estas reflexões amargas, de profunda crítica ao poder corruptor do “metal luzente e louro”, isto é, do dinheiro.
Explicando esta passagem, Amélia Pinto Pais escreve que “o ouro e o dinheiro têm, de facto, estranhos poderes, como o de levarem à rendição fortalezas bem munidas; levarem à traição os amigos; fazerem cometer vilezas aos mais nobres; entregar Capitães aos inimigos. O ouro chega a corromper as purezas virginais, a depravar as ciências, cegando os juízos e as consciências. Interpreta mais do que subtilmente os textos. Leva as pessoas ao falso testemunho e torna tiranos os reis. E parece que corrompe até aqueles que se dedicam a Deus; e sempre, sempre, sob capa de virtuoso…”.
O Poeta assume, assim, o seu papel humanista de intervenção, de forma pedagógica, denunciando o “vil interesse” e a sede insaciável do dinheiro, fonte de corrupção e de traições, tanto no rico como no pobre…
Em suma, a cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs que não dão verdadeiro valor ao homem e muito menos à Pátria que, à época, nas palavras do narrador, estava metida “no gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza” (X, 145).
Os ideais que dão acesso ao heroísmo, à glória, à imortalidade, são outros.
Esta é a exortação do Poeta, no final d’”Os Lusíadas”, uma epopeia intemporal!
A Organização
Legenda da imagem: “O emprestador e a sua mulher”, Marinus van Reymerswaele – óleo no painel (Prado, Madrid, Spain / Bridgeman Images). Disponível em https://www.meisterdrucke.pt/, acedido em 28/03/25.
Fonte: Amélia Pinto Pais, “Os Lusíadas em Prosa”, Porto, Areal Editores, 1995, p. 63.
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 23
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 23
“Camões: Embarca Engenho e Arte” – “Verdes são os campos”
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.
Luís de Camões, “Lírica”, fixação do texto de Hernâni Cidade, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 107.
Esta é uma conhecida cantiga do ciclo da “menina dos olhos verdes”, em que o poeta exalta a beleza da mulher amada e realça a ideia de que a verdura que o gado pasta é a graça dos olhos que lhe enche o coração.
Num cenário bucólico, com a paisagem a ser utilizada como uma metáfora para os sentimentos, o sujeito poético compara os olhos da amada ao verde dos campos, dizendo que estes são como os olhos do seu coração. E assinala que, tal como as ovelhas e os gados, também ele se alimenta, não da “verdura bela” das ervas, mas, isso sim, das memórias da sua amada.
Aliás, a recordação feliz, ainda que saudosa e nostálgica, da amada chega ao ponto da sintonia perfeita do “eu” lírico com os gados que pastam, com contentamento:
“(…) Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração”.
Neste ambiente de exaltação e de vassalagem da amada, dir-se-ia que a Natureza é bela na medida em que participa das belezas da senhora.
O canto dos olhos verdes traduz, por outro lado, uma forte originalidade. De facto, à época, o ideal da beleza feminina considerava que os olhos mais belos eram os azuis.
Acontece que diversos poemas de Camões são dedicados a uma destinatária de olhos verdes, uma situação que “originou várias especulações biográficas”. Segundo Maria de Lurdes Saraiva, “com segurança, só se pode afirmar que essa amada de olhos verdes era de extrema juventude, uma criança que começava a entrar na vida”.
Com a primavera de 2025 a dar os primeiros passos, apetece ler e ouvir e cantar a simplicidade e a beleza do amor, num ambiente bucólico.
“Verdes são os campos” é um poema que Zeca Afonso musicou e cantou. Faz parte do álbum “Traz outro amigo também”, editado em 1970. E, desde então, conheceu várias interpretações…
Vamos ouvir a versão original: Zeca Afonso, “Verdes são os campos”, de Luís de Camões.
Boa primavera! Viva a poesia…
Fonte: Luís de Camões, “Lírica Completa I”, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1980, pp. 160 e 166.
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 21
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 21
Publicação de “Os Lusíadas”
As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, I, 1-3
Terá sido no dia 12 de março do ano de 1572, quarta-feira, que da oficina de António Gonçalves saíram, “em edição modesta, os primeiros exemplares impressos do livro chamado ‘Os Lusíadas’, de Luís de Camões.”
“A obra harmonizava elementos da epopeia clássica com a evocação da expedição de Vasco da Gama à Índia e as próprias memórias de viagem do autor, cheias de trabalhos e perigos; combinava frescos históricos e factos científicos com recursos poéticos e mitologia; juntava o panfleto político aos apelos cruzadísticos; aliava ao saber enciclopédico a excelência de estilo. E todos os heroísmos do passado eram trazidos ao presente para se projetarem no futuro”.
A edição de 1572 publicou uns 150 exemplares de que sobram ainda uma meia centena, o que ilustra bem o cuidado que, ao longo dos séculos, o livro inspirou.
Camões chamou-lhe “Os Lusíadas”, título erudito que foi buscar a duas obras do humanista André de Resende escritas em latim, “mas até o próprio André de Resende, ao que parece, tinha colhido a palavra ‘lusíadas’ em obras anteriores”.
Com esta publicação, concretizava-se, finalmente, o anseio coletivo que se arrastava há várias décadas, no sentido da composição de um poema épico, conferindo aos feitos nacionais recentes um estatuto universal e intemporal.
António Ferreira “fora dos últimos a reclamar a necessidade de pôr em verso os feitos gloriosos. Incitara Pero Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Diogo de Teive, D. António de Vasconcelos… Não consta que tivesse incitado Luís de Camões”, mas a verdade é que foi este quem concretizou tal obra.
Para a sua publicação foi necessário obter as licenças exigidas, como o alvará régio e o parecer favorável da Inquisição, e também arranjar um mecenas que custeasse os cerca de 40 mil réis da impressão.
D. Manuel de Portugal, da família do Conde do Vimioso, patrocinou a edição, mas desejou permanecer na sombra, de tal modo que a epopeia foi dada à estampa sem uma ode dedicada ao protetor. Tudo isto porque ele “não podia comprometer-se excessivamente, nem à sua família, com um poema que, apesar de todos os méritos e excelências, questionava a nobreza, os membros do clero, o sistema jurídico, o próprio monarca…”.
Quanto ao filtro da Inquisição, frei Bartolomeu Ferreira foi o dominicano que examinou os dez cantos d’”Os Lusíadas”. E deu um parecer favorável:
“[…] Não achei neles cousa alguma escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceu que era necessário advertir os leitores que o autor, pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos portugueses na Índia, usa de uma ficção dos deuses e dos gentios. […] Todavia, como isto é poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretenda mais do que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos deuses na obra, conhecendo-a por tal. E ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé, que todos os deuses dos gentios são demónios”.
Assim sendo, conclui, o livro é “digno de se imprimir” e o seu “autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas”.
A epopeia terá, então, sido publicada a 12 de março de 1572, completam-se amanhã 453 anos.
Com Isabel Rio Novo, podemos imaginar esse dia e a emoção do autor. “Em 1572, Camões tinha 47 ou 48 anos. Não era um velho, apesar de a idade ter outro peso naqueles tempos. Mas era um homem envelhecido, doente, amargurado, a quem o futuro já fugia. No entanto, nessa manhã de março (cheia de sol, claro que sim) talvez tenha encarado a vida que lhe restava com algum otimismo”.
Nos 453 anos da publicação d’”Os Lusíadas”, celebremos Camões. Cantemos o Poeta, que continua a espalhar Engenho e Arte!
A Organização
Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 483, 459, 458, 467-468, 474, 478 e 481.
Retrato de Camões (legenda e fonte):
Retrato de Camões por Fernão Gomes, em cópia de Luís de Resende. O original perdeu-se, mas foi pintado ainda em vida do Poeta (cerca de 1577). É considerado o mais autêntico retrato do nosso épico.
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cam%C3%B5es,_por_Fern%C3%A3o_Gomes.jpg
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 22
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 22
“Camões: Embarca Engenho e Arte”: Sôbolos rios que vão | Redondilhas de Babel e Sião
Sôbolos rios que vão
Por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
[…] Ali, depois de acordado,
Co'o rosto banhado em água,
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto, mas é mágoa.
E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.
[…] Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível.
Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do Mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se só com te imaginar,
Tanto sobe o entendimento,
Que fara se em ti se achar?
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!
Luís de Camões
Vítor Aguiar e Silva considera este longo poema o “canto penitencial de um homem que sabe que só a fé em Cristo e só a graça de Deus o podem salvar”.
E Vasco Graça Moura afirma que em “Sôbolos rios que vão” Camões “terá intentado conciliar, metafísica e escatologicamente, uma ortodoxia católica e uma das mais estritas conceções pitagóricas de que haverá vestígios na criação literária do século XVI”.
Inspirado no Salmo 136 – “Junto aos rios de Babilónia” –, que chora a deportação dos Judeus para a Babilónia ao mesmo tempo que recorda a Terra Prometida, o poema celebra a Jerusalém celeste e é de uma enorme riqueza, em termos de intertextualidades e de paralelismos, nomeadamente com outras passagens bíblicas, mas, sobretudo, com a obra “Imagem da Vida Cristã”, de frei Heitor Pinto.
São vários os biógrafos e comentadores da obra de Camões que sugerem que o Poeta compôs estas célebres redondilhas na sequência do seu naufrágio, no delta do rio Mecom, quando regressava de Macau para Goa.
Isabel Rio Novo, autora de uma biografia do nosso épico recentemente editada, não partilha, no entanto, esta ideia. Na sua perspetiva, “é improvável que um náufrago descorçoado, com sede, fome, aflito, dispusesse de condições materiais e psicológicas para se entregar à escrita de poemas. Mas é possível – acrescenta a investigadora – que essa espécie de canto penitencial, “tal como os sonetos em tom de elegia dedicados à moça chinesa, tenham começado a ser inconscientemente forjados nessa altura em que mais um transe da fortuna o atingia, roubando-lhe, de uma vez, a riqueza e a mulher que talvez amasse”.
Do que parece não haver dúvidas é de que esta “verdadeira autobiografia espiritual é uma “obra tardia, posterior à publicação de ‘Os Lusíadas’, pois o canto profano (‘a flauta’) é preterido em favor do canto divino (‘a lira dourada’), que ressuma a efemeridade da vida, a iminência da morte, o desejo profundo de conversão. Provavelmente – conclui Isabel Rio Novo –, Camões entrelaçou dois tempos num só: o passado e o presente, o naufrágio real no Extremo Oriente e o naufrágio metafórico da sua alma angustiada”.
Na parte final deste poema de rara beleza, Sião deixa de ser o passado, a mulher amada, e transforma-se na Jerusalém celeste, na Bem-aventurança. O amor mundano projeta o reflexo do amor divino:
“Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!”
Cinco séculos volvidos, na Quaresma de 2025, Camões continua a espalhar Engenho e Arte!
Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 672; 389-390; 547.
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 20
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 20
Episódio do Velho do Restelo
Mas um velho, d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d'experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
[…] Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas? Não segue ele do Arábio a Lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!”.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, IV, 94-95; 100-101.
O “Velho do Restelo” constitui um episódio eloquente d’”Os Lusíadas”, com uma fortíssima mensagem política e filosófica.
Na Praia das Lágrimas, em Belém, no momento em que a armada de Vasco da Gama se preparava para zarpar, Camões coloca na boca de um “velho, d' aspeito venerando,” uma crítica muito forte em relação a tudo o que se está a passar: censura a “glória de mandar” e a “vã cobiça”, responsáveis por “mortes”, “perigos”, “tormentas”, “crueldades”, “desemparos”, “adultérios”, consumição “de fazendas, de reinos e de impérios”.
Pela boca do velho, o narrador aproveita, assim, para questionar a estratégia da expansão marítima até ao Oriente, manifestando, em alternativa, a predileção de determinados setores da sociedade portuguesa pela política africana: “Não tens junto contigo o Ismaelita / Com quem sempre terás guerras sobejas?”.
Esta é também a posição de Camões, apresentada na dedicatória ao rei D. Sebastião e nas estâncias finais d’”Os Lusíadas”, da nobreza e de uma parte da intelectualidade, na esteira de “Gil Vicente, Sá de Miranda, João de Barros, Damião de Góis ou António Ferreira.”
Ficcionalmente, este episódio acontece a 8 de julho de 1497. Na verdade, foi escrito mais de meio século depois, de tal maneira que, quando “Os Lusíadas” são publicados, em 1572, esta é uma aposta geoestratégica com muito peso.
À época, as dificuldades na Ásia portuguesa eram gritantes e a instabilidade dominava no Norte de África, situação que nos obrigava a estar muito vigilantes, não só quanto às praças que ainda nos restavam em Marrocos, mas até em relação ao próprio Algarve.
Neste contexto – escreve Isabel Rio Novo –, “o fanatismo do jovem rei e a sua obsessão pelo espírito de cruzada, cuidadosamente alimentada por uma certa franja da nobreza, foram, talvez, uma necessidade do tempo, com a qual Camões estaria essencialmente de acordo. Até porque, de certo modo, o projeto da conquista africana constituía uma possível solução para o beco sem saída em que a Índia se estava a tornar. Era o caminho que o Velho do Restelo apontava, contrapondo à conquista de um império comercial longínquo, consumirdor de ‘fazendas’ e de ‘reinos’, a possibilidade de ‘guerras sobejas’ contra um inimigo que estava ali ‘às portas’ e que era urgente combater.”
A expedição acabou mesmo por se realizar. Diogo Bernardes foi escolhido para acompanhar e cantar a vitória dada como certa. Camões também o desejou, mas não o conseguiu. Só que o sonho glorioso redundou na tragédia de 4 de agosto de 1578, em Alcácer Quibir…
“Assim que recebeu a notícia da derrota e da morte do rei, [Camões] rasgou as estâncias que tinha encetado quando a armada de D. Sebastião largara do Tejo. Quanto ao poema de Diogo Bernardes, não chegou a ser começado, porque o autor foi um dos prisioneiros”…
Tempos sombrios da História de Portugal. E também de Luís de Camões e do barquense Diogo Bernardes.
Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia
de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 446, 467 e 544.
A Organização