Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 29
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 29
A Máquina do Mundo e Fernão de Magalhães
Eis aqui as novas partes do Oriente
Que vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo a porta ao vasto mar patente,
Que com tão forte peito navegais.
Mas é também razão que, no Ponente,
Dum Lusitano um feito inda vejais,
Que, de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho há de fazer nunca cuidado.
[…] Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.
Desque passar a via mais que meia
Que ao Antártico Polo vai da Linha,
Dũa estatura quase giganteia
Homens verá, da terra ali vizinha;
E mais avante o Estreito que se arreia
Co nome dele agora, o qual caminha
Pera outro mar e terra que fica onde
Com suas frias asas o Austro a esconde.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, X, 138; 140-141.
No longo episódio da Ilha dos Amores, que representa cerca de vinte por cento d’”Os Lusíadas”, há vários momentos marcantes que reforçam o seu carácter simbólico de prémio “bem merecido” pelos “trabalhos tão longos” (IX, 88).
Depois do casamento entre as ninfas e os navegantes, com os nossos heróis a serem divinizados, isto é, elevados ao estatuto dos deuses, imortais – “esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo humanos” (IX, 91) –, acontece um banquete, durante o qual uma “bela ninfa” canta os futuros feitos dos Portugueses.
Téthis conduz, então, Vasco da Gama ao cimo de um monte, onde lhe mostra a chamada “máquina do Mundo”, revelando-lhe, no orbe terrestre, os lugares onde os lusos hão de praticar grandes obras e o que será o Império Português.
Nesta visão, surge o grande feito da viagem de Fernão de Magalhães, o herói cujas origens estão em Paço Vedro de Magalhães, concelho de Ponte da Barca.
Português no feito, mas “de seu Rei mostrando-se agravado”, será ao serviço de Castela que Magalhães “caminho há de fazer nunca cuidado”.
E, em Puerto de San Julián, verá homens de uma “estatura quase gigantesca”, os nativos de pés enormes, a que o navegador chamou “Patagónios” ou “Patagões”, termo que estaria na origem da designação da região onde se encontravam, a Patagónia, bem lá no sul do continente americano.
Até que, “mais avante”, há de descobrir, ao longo de novembro de 1520, a passagem para o outro lado, através de um “Estreito que se arreia / Co nome dele agora”, o famoso “Canal de Todos-os-Santos”, agora dito “Estreito de Magalhães”. E, chegados ao “outro mar”, que estava calmo, “Pacífico” lhe chamou, nome que substituiria o de Mar do Sul, que Balboa lhe dera, quando o avistara, uns anos antes, no Panamá.
Estamos perante o auge da glorificação: “comovido / De espanto e desejo” (X, 79), Vasco da Gama vê o que só aos deuses é dado ver. É a glorificação simbólica do conhecimento, do saber proporcionado pelo sonho da descoberta.
Ao ser elevado acima das categorias do tempo e do espaço e ao ser proclamado senhor do “Saber, alto e profundo, / Que é sem princípio e meta limitada” (X, 80), o herói recebe a coroação máxima. Com esta iniciação ao conhecimento ou Sapiência Suprema do Universo, passa do mundo profano, vulgar, para um mundo sagrado.
O “bicho da terra tão pequeno” (I, 106) vence, afinal, as suas próprias limitações e vai além “do que prometia a força humana” (I, 1), num verdadeiro hino ao orgulho humanista do Renascimento.
Podemos, igualmente, aproximar a máquina do Mundo da temática amorosa. De facto, o Amor é a força capaz de corrigir o caos e de restabelecer a Harmonia e, por isso, guiado por Téthis e pela força do Amor para contemplar a “máquina do Mundo”, o “felice Gama” (X, 75), agora divinizado, ouve o convite da deusa:
“Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais” (X, 76).
Cabe ao homem, por meio de seus esforços, por meio do Amor, impor a si e àquilo que está em seu redor uma visão ordenada da Vida…
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 28
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 28
Bem-vindos à Ilha dos Amores, morada dos heróis
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes, Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
[…] E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora cos conselhos bem cuidados,
Agora co as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, IX, 92-93; 95.
Depois de várias dificuldades em Calecute, os Portugueses iniciam a viagem de regresso à Pátria. Estamos em finais de julho de 1498.
É então que Vénus decide dar um prémio “bem merecido” aos corajosos navegadores pelos “trabalhos tão longos” (IX, 88), “Por mares nunca de antes navegados” (I, 1). Fá-los aportar a uma ilha paradisíaca, uma “ínsula divina” (IX, 21), povoada de ninfas amorosas que lhes deleitam os sentidos. Numa atitude estudada de sedução, as divindades fingem assustar-se com a presença dos marinheiros, mas logo se rendem aos encantos do amor.
Esta ilha “alegre e deleitosa” (IX, 54) não existe na realidade, mas na imaginação, no sonho que dá sentido à vida. O sonho que permite atingir a plenitude da Beleza, da Harmonia, do Amor, da Realização.
A grandeza épica da viagem também se mede pela grandeza do prémio, e esse foi o da imortalidade, simbolicamente representada na união homens-ninfas, fazendo-se juras de “eterna companhia, / Em vida e morte, de honra e alegria” (IX, 84). Quer dizer, os Portugueses deixam de ser simples mortais, transcendem a condição humana e recebem os dotes de uma experiência divina – são heróis: “[…] esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo humanos” (IX, 91).
É a energia criativa do Amor que conduz os Portugueses à imortalidade. Não um amor qualquer, mas o Amor desinteressado, o Amor à pátria, o Amor ao dever, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse Amor que liberta da "lei da morte".
Na Ilha dos Amores, temos a glorificação do “peito ilustre lusitano”, a vitória do génio humano e ainda a embriaguez dos sentidos. A Ilha é também a manifestação da Beleza de um mundo ideal, onde todos os que merecem são compensados pelo seu esforço, um mundo onde, lado a lado, se conjuga o terreno e o divino, o carnal e o espiritual. Ela é o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis apontam para a recolocação do Amor como centro da Harmonia e do Mundo.
Este regresso ao paraíso perdido remete, naturalmente, para a questão da autodeterminação humana e do orgulho humanista. A deificação dos homens elevados ao estatuto de deuses é uma ideia adequada ao impulso do Renascimento, que assistiu a um importante avanço no domínio do planeta por parte do Homem.
Assumindo a sua missão humanista, o Poeta, de forma pedagógica, não perde ainda o ensejo de tecer considerações sobre a forma de alcançar a Fama, ao exaltar o perfil dos que podem ser “nesta ‘Ilha de Vénus’ recebidos”, reiterando a importância de valores como a justiça, a coragem, o amor à Pátria, a lealdade ao Rei:
“Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;”
Tudo isto porque tais honrarias vãs não dão valor a ninguém: melhor é merecê-las sem as ter do que possuí-las sem as merecer…
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 26
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 26
“Camões: Embarca Engenho e Arte” – uma história trágico-marítima
(…) Outro também virá, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.
Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e preclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.
E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida e implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, V, 46-48.
O gigante Adamastor profetizara, ficcionalmente, numa noite aterradora de novembro de 1497, mil e uma vinganças: “Eu farei de improviso tal castigo, / Que seja mor o dano que o perigo!” (V, 43); “Naufrágios, perdições de toda a sorte, / Que o menor mal de todos seja a morte!” (V, 44).
Aproveitando o facto de a obra ser escrita mais de meio século depois, o narrador assinala alguns acontecimentos trágicos, como a morte de Bartolomeu Dias, que havia descoberto o Cabo, em 1488. Pois bem, aí morreria – qual vingança do monstro – em 1500. E o mesmo se diga de D. Francisco de Almeida, 1.º vice-rei da Índia, morto num combate contra os Cafres, ao norte do Cabo da Boa Esperança, em 1510 (cf. V, 45).
Mas o caso mais impressionante foi o da “triste ventura e negro fado” por que passaram Manuel de Sousa Sepúlveda, a esposa – a bela D. Leonor de Albuquerque – e os dois filhos de tenra idade, na sequência do naufrágio do galeão São João.
Aconteceu em meados de 1552 (24 de junho), um ano antes de Luís de Camões navegar pelas mesmas paragens, mas em direção a Goa.
Tendo como capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, que servira na Índia durante 17 anos, o galeão partira de Cochim “carregado de riquezas e com quinhentas pessoas a bordo”.
Naufragou perto Cabo da Boa Esperança, mas o capitão, a família e muitos outras pessoas conseguiram escapar a bordo de dois batéis, iniciando uma longa caminhada pela costa moçambicana, em direção ao rio Tembe, onde havia Portugueses.
Sofreram “trabalhos excessivos”, obrigados a lutar contra a fome, a sede, o cansaço, os ataques de animais selvagens e dos cafres locais. E foi num desses assaltos que os Sepúlveda foram despidos e enviados para o mato.
Escreve Isabel Rio Novo que D. Leonor acabaria por ceder “à exaustão e ao desalento. Despida, com os filhos famintos, sentou-se no chão, envolveu-se nos cabelos e fez uma cova com as próprias unhas, onde se enterrou até à cintura. Os náufragos prosseguiram a caminhada; apenas um servo e algumas escravas ficaram ao lado de D. Leonor. Entretanto, Manuel de Sousa Sepúlveda, que fora à procura de frutos silvestres, encontrou um dos filhos morto, a mulher em choque diante do pequeno cadáver, o outro filho moribundo nos braços. Sem dizer palavra, o pai abençoou a criança morta e enterrou-a. Ausentou-se novamente, e, quando voltou, já D. Leonor e o outro filho tinham morrido. As escravas que assistiram ao lance e sobreviveram para narrar a tragédia contaram que o homem se sentou ao lado dos cadáveres e aí permaneceu durante algum tempo, de rosto afundado nas mãos. Depois, ele próprio enterrou a mulher e o filho. A seguir, embrenhou-se no mato e nunca mais foi visto. As escravas e o servo seguiram na direção dos restantes náufragos e conseguiram alcançá-los. Foram essas três escravas que, juntamente com oito portugueses e catorze escravos, chegaram a Moçambique a 25 de maio de 1553, onde narraram o que tinham presenciado, e dali foram à Índia”.
São estes acontecimentos trágicos dos “dois amantes míseros” que, para além de mereceram uma justa celebração n’”Os Lusíadas”, inspiraram a “Elegíada”, de Luís Pereira Brandão, o poema “Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda”, de Jerónimo Corte-Real, e a mais célebre relação de naufrágio de todas as compiladas na “História Trágico-Marítima”, de Bernardo Gomes de Brito.
E também a canção “Manuel de Sousa Sepúlveda”, um tema de Fausto que faz parte do seu álbum de 1994, “Crónicas da Terra Ardente”.
Vamos ouvir…
A Organização
Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 289-291.
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 27
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 27
“Camões: Embarca Engenho e Arte” – O caminho da fama e da glória
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores;
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos;
Não cos manjares novos e esquisitos,
Não cos passeios moles e ouciosos,
Não cos vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não cos nunca vencidos apetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum que o passo mude
Pera algũa obra heróica de virtude;
Mas com buscar, co seu forçoso braço,
As honras que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado com um árduo sofrimento.
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 95-97.
Depois de múltiplos contratempos, traições e perigos, a armada portuguesa, guiada pelo piloto melindano, avista Calecute, na Índia. A missão está cumprida e Vasco da Gama agradece a Deus:
“(…) Os joelhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agradeceu” (VI, 93).
Concluída, epicamente, a viagem, o Poeta, assume, então, o seu papel humanista e intervém, de forma pedagógica.
Defende um novo conceito de nobreza, espelho do modelo da virtude renascentista: a fama e a imortalidade, o prestígio e o poder, adquirem-se pelo esforço pessoal – enfrentando batalhas e tempestades, desafiando “hórridos perigos”, suportando sacrifícios e privações, “Engolindo o corrupto mantimento / Temperado com um árduo sofrimento”.
Não se é grande, nobre, imortal, por herança, permanecendo no luxo e na ociosidade, nem pela concessão de favores se deve alcançar lugar de relevo. Pelo contrário! O verdadeiro valor das honras e da glória está em serem conseguidas por mérito próprio. O herói faz-se pela sua coragem e virtude, pela generosidade da sua entrega às grandes causas:
“Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores”…
Cabe a cada homem escolher o seu percurso de vida, fazendo valer a sua própria vontade.
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 25
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 25
“Camões: Embarca Engenho e Arte” – Os medos do Gigante Adamastor…
(…) Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
E disse: – «Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:
(…) Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás de sojugar com dura guerra.
(…) Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!»
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 40-42; 44.
Ao longo do canto V d’”Os Lusíadas”, Vasco da Gama, em Melinde, conta – ou melhor, canta – ao rei local como foi a viagem, desde Belém, no Restelo, de onde a armada partira, a 8 de julho de 1497
Entre as ocorrências dignas de registo, sobressai o famoso episódio do Gigante Adamastor, que ocupa as estâncias 37-60.
Segundo o narrador, este monstro aterrador “de disforme e grandíssima estatura”, que dizia que aqueles mares lhe pertenciam e que quem se atrevesse a entrar neles seria destruído, apareceu-lhes junto ao Cabo das Tormentas, depois chamado Cabo da Boa Esperança.
João de Barros e Fernão Lopes de Castanheda dizem que a armada passou o Cabo a 20 de novembro, uma quarta-feira, “ao meio-dia, (…) com vento à popa”, surgindo, então, a aparição do Adamastor, notável criação camoniana que simboliza o terror do mundo desconhecido.
Face à coragem, à valentia, ao “sobejo atrevimento” dos Portugueses, o monstro anuncia-lhes “suma vingança”:
“(…) em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!”
É a profecia ameaçadora da nossa futura História Trágico-Marítima…
Adamastor tem, no entanto, uma vulnerabilidade… Vasco da Gama põe-se de pé e pergunta-lhe: “Quem és tu?”. Chocado, o monstro, “dando um espantoso e grande brado”, conta, então, a sua triste história de amor e traição com uma deusa: Júpiter havia-o transformado num penhasco enorme – o “remoto Cabo” – por amar Thétis!
Interessante é ainda facto de este episódio ter ressonâncias autobiográficas e remeter para os tempos da juventude de Camões, quando esteve desterrado em Ceuta, onde perdeu o olho direito.
Segundo vários autores, através do Adamastor, o Poeta dá-nos “informações de que pertenceu à armada do estreito de Gibraltar”. Quando o monstro confidencia ao Gama “[ter sido] capitão do mar, por onde andava / A armada de Neptuno, que eu buscava” (V, 51), está “a dizer-lhe que servira na armada do estreito de Gibraltar, aquela que permanentemente vigiava ou buscava a dita armada de Neptuno, nome por que era conhecida a esquadra turca”.
“Na realidade – conclui Isabel Rio Novo, a quem estamos a citar –, os biógrafos e comentadores antigos põem Camões a servir nessa armada, estacionando em terra, nos intervalos das missões”.
Seja como for, para a posteridade fica o Adamastor, representante dos medos, mas, também, símbolo da capacidade para ultrapassar obstáculos, enaltecendo o herói.
Já no século XX, Fernando Pessoa, na obra “Mensagem”, recria a figura sob a forma do Mostrengo. E o Adamastor continua a inspirar artistas como, por exemplo, A Garota Não e Peculiar.
“Medo, que me corres no corpo, / Que me matas os sonhos, / Que me tentas calar”… Vamos ouvir a canção “Adamastor”: letra e música de João Nicolau Quintela, com interpretação de Peculiar.
Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 182.
A Organização