Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 4
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 4
Endechas a Bárbara escrava
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E, pois nela vivo,
É força que viva.
Luís de Camões
Fonte: https://www.escritas.org/pt/t/2101/endechas-a-barbara-escrava
“Endechas a Bárbara escrava”, ou cativa, é mais um conhecido poema de Camões, notável pela forma como, em pleno seculo XVI, glorifica uma imagem da mulher distinta da do ideal clássico, vigente na época.
Escrita na “medida velha”, com versos de cinco sílabas (a chamada redondinha menor), a composição está em conformidade com a herança da poesia palaciana.
Num registo leve, de enorme suavidade, esta é uma das poucas poesias de Camões em que se fala de um amor correspondido, assim como da felicidade proporcionada pela “presença serena", pela "doce figura” idealizada e perfeita daquela mulher de outra raça, por quem se apaixonara.
Mas “Endechas a Bárbara cativa" é, sobretudo, uma obra-prima genial, pela ousadia e originalidade com que o artista rompe com o modelo clássico e convencional, que exaltava a beleza loura, a mulher branca, de faces rosadas, tal como a Laura de Petrarca, a quem todos imitavam.
Aqui, temos um canto de louvor à beleza, isso sim, de uma mulher negra e escrava, o que para a época constitui algo de profundamente inovador e até surpreendente.
Para além disso, faz um jogo de inversão de papéis: uma escrava, socialmente falando, transforma-se em poderosa “senhora / de quem é cativa”, isto é, do sujeito poético agora preso a ela, afetivamente.
“Endechas a Bárbara escrava” já tem quase cinco séculos de vida. E continua um verdadeiro apelo inspirador à Humanidade e ao encontro de culturas. Um hino intemporal ao único sentimento capaz de aproximar povos, de unir corações: o amor!
Aqui fica o convite para escutar o poema, interpretado por Zeca Afonso, em 1968, no disco “Cantares do Andarilho”: https://www.youtube.com/watch?v=hH3Qyy53t1w
“Endechas a Bárbara escrava” remete ainda para uma abordagem intertextual com “Lágrima de preta”, um poema do século XX, da autoria de António Gedeão:
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=lR3ho-ptqy0
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 3
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 3
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões, “Lírica - Terceiro volume das Obras Completas” (fixação do texto de Hernâni Cidade), Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 188.
Neste soneto, Camões aborda um tema muito caro à poesia, explorado há séculos e séculos por inúmeros filósofos e artistas.
Seguindo os modelos de Petrarca (1304-1374), o poeta usa o pensamento lógico para expor e tentar definir um sentimento profundo e complexo – o amor.
Ao longo das duas quadras e do primeiro terceto, desenvolve o seu raciocínio através da apresentação de ideias opostas, enumerando uma série de imagens metafóricas, de paradoxais contraposições. Com este recurso à chamada antítese, tenta uma explicação para um conceito tão enigmático, para um sentimento tão ambíguo, como o amor.
O raciocínio lógico do poeta termina com a conclusão, no último terceto, apresentada em forma de interrogação, o que nos remete para o plano da reflexão:
“Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
O poeta explora, assim, com perfeição, a dualidade e ambiguidade do amor. Dir-se-ia que toca no âmago de um dos sentimentos mais complexos, que na sua vivência provoca, ao mesmo tempo, tanto prazer e tanto sofrimento.
Com este soneto, Luís de Camões aborda um tema universal, oferecendo-nos um registo intemporal, com figuras e definições de rara beleza.
Vale a pena (re)ler o poema. E ouvi-lo, dito e cantado…
Eis o soneto dito por Eunice Muñoz (https://www.youtube.com/watch?v=gwBaVcbGWgQ) e pela atriz brasileira Sílvia Pfeifer (https://ensina.rtp.pt/artigo/amor-e-um-fogo-que-arde-sem-se-ver-de-luis-de-camoes/).
Outras interpretações do poema, agora cantado por Camané & Mário Laginha (https://www.youtube.com/watch?v=YCU0hInDv6Q) e pelos Pólo Norte e Miguel Gameiro (https://www.youtube.com/watch?v=3SjqccmEH6g).
Camões: Embarca Engenho e Arte - Edição 1
Camões: Embarca Engenho e Arte - Edição 1
“(…) Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexande e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram. (…)”.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, I, 2-3
Luís de Camões (1524-1580) soube como poucos fixar poeticamente os dramas mais profundos da existência humana e cantou, de uma forma genial, a história e a grandeza do “peito ilustre lusitano”.
Ele é o símbolo maior da nossa identidade nacional, de tal modo que é no dia da sua morte que celebramos quem somos, é a 10 de junho que comemoramos o Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas.
Na passagem do V centenário do seu nascimento, propomo-nos celebrar o Poeta, valorizando o seu legado artístico e humanista.
Por isso, até ao próximo dia 10 de junho, sempre à terça, vamos partilhar um texto/ excerto de Camões, convidando a comunidade para, a partir de múltiplas linhas temáticas, refletir e (re)descobrir o profundo impacto da sua obra, num diálogo intemporal com o presente.
“(…) Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.”
Camões: Embarca Engenho e Arte - Edição 2
Camões: Embarca Engenho e Arte - Edição 2
Ao desconcerto do Mundo
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E, pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
Luís de Camões
Esta é uma esparsa famosa, uma composição poética pertencente à influência tradicional, onde Camões reflete sobre o desconcerto do Mundo, ilustrando a sua abordagem com a sua experiência vivida.
O sujeito poético analisa a sociedade e assinala a sua perceção da injustiça no Mundo, já que os maus são premiados e os bons são castigados.
Verificando que não compensava ser “bom”, confessa que decidiu mudar o seu comportamento, tornando-se “mau”, na esperança de, assim, obter os benefícios que observava nos outros e conseguir uma vida alegre e feliz. Sucede que foi castigado, o que significa que só para ele o Mundo é justo e está “concertado”.
É esta situação que lhe causa espanto, perplexidade, indignação, desencanto, pessimismo, angústia, tal o desconcerto e a injustiça que, na sua perspetiva, existem.
De facto, a sociedade é de tal modo injusta, que premeia os maus comportamentos e castiga todos os que se orientam pelos verdadeiros princípios e valores, não obtendo ele quaisquer privilégios ao tornar-se como os outros, pois, só para ele, o Mundo é justo.
Nas palavras de José António Saraiva e Óscar Lopes, o problema central do poeta reside na “não correspondência entre os anseios, os valores, as razões e aquilo a que chamaríamos hoje o processo objetivo”, isto é, a realidade da vida social e material (1985, p. 337).
Em síntese, o poema é um balanço dos tempos de grande incerteza e contradição em que Camões vive: a par da confusão irracional do destino, das injustiças, do desconcerto, da arbitrariedade, da mentira dos “maus” – que, de acordo com a perceção do poeta, são premiados –, permanecia o desejo de justiça e de concerto do Mundo.
Esta reflexão afigura-se, porém, intemporal…
500 anos depois, em 2024, qual é a perceção reinante da vida e da sociedade?
O Mundo anda “concertado”?
E a Justiça é um presente para todos?
Eis o poema dito por Eunice Muñoz:
"OPINIÕES DE SEGUNDA" - “Sou estrangeira! E agora?”
"OPINIÕES DE SEGUNDA" - “Sou estrangeira! E agora?”
No Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca cerca de 12% dos alunos são estrangeiros, situação que representa um enorme desafio, nomeadamente em termos de acolhimento e de integração/inclusão.
É neste contexto que ganha toda a pertinência a crónica de Lurdes Silva e as considerações que partilha sobre esta problemática.
“Sou estrangeira! E agora?” – É mesmo para ler e pensar…