Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 19
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 19
Ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia
Aquele único exemplo
De fortaleza heróica e de ousadia,
Que mereceu, no templo
Da eternidade, ter perpétuo dia,
O grão filho de Thétis, que dez anos
Flagelo foi dos míseros Troianos;
Olhai que em vossos annos
Produze huma orta insigne várias ervas
Nos campos lusitanos,
As quaes, aquellas doutas protervas
Medea e Circe nunca conheceram,
Posto que as leis da Mágica excederam.
[…] O qual está pidindo
Vosso favor e ajuda ao grão volume,
Que agora em luz saindo
Dará na Medicina um novo lume,
E descobrindo irá segredos certos
A todos os antiguos encubertos.
[…] Ajudai quem ajuda contra a morte,
E sereis semelhante ao Grego forte.
Luís de Camões, em Garcia de Orta, “Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia”, Goa, Ioannes de Endem, 1563. Disponível em http://purl.pt/22937, acedido em 14.02.2025
Este excerto da ode “Ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia”, faz parte do primeiro poema de Luís de Camões impresso em letra de forma.
Também conhecido por “Aquele único exemplo...”, constitui o prefácio da obra, à época revolucionária, “Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia”, da autoria do conhecido médico e botânico Garcia de Orta, publicada em Goa, a 10 de abril de 1563, pelo tipógrafo Ioannes de Endem.
Garcia de Orta vivia na Índia há mais de três décadas e, em Goa, desde 1538. Foi aqui que conheceu e travou amizade com Luís de Camões, a quem pediu para prefaciar o seu livro.
O poeta fê-lo com uma ode dedicada ao Conde do Redondo, D. Francisco Coutinho, Vice-Rei da Índia, de quem era próximo, pedindo-lhe, precisamente,
“[…] favor e ajuda ao grão volume,
Que agora em luz saindo
Dará na Medicina um novo lume,
E descobrindo irá segredos certos
A todos os antiguos encubertos”.
“A 5 de novembro de 1562, D. Francisco Coutinho assinou o alvará que concedia a Garcia de Orta os direitos de publicação do livro”, por considerá-lo “muito proveitoso”.
Este é, aliás, um período feliz da vida de Camões no Oriente. Durante o vice-reinado do amigo Conde do Redondo, o poeta conseguiu libertar-se da sua habitual condição de penúria, ao ser nomeado para o cargo de Provedor dos Defuntos em Macau.
Para além da ode que agora nos ocupa, “Ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia”, que constitui o prefácio da obra de Garcia de Orta (Goa, 1563), durante a vida de Luís de Camões somente foram publicados “Os Lusíadas”, em Lisboa, em 1572, e mais dois poemas: uma elegia e um soneto, ambos integrando a “Historia da Prouincia Sancta Cruz”, de Pero de Magalhães de Gândavo, impressa em Lisboa, em 1576. A restante obra do Poeta, nomeadamente, a sua vasta produção lírica, só foi impressa depois da sua morte.
Quanto a Garcia de Orta, faleceu em Goa, em 1568, ano em que Camões inicia o seu conturbado regresso à pátria.
Morreu, mas não descansou em paz! E isto porque, num auto de fé realizado 12 anos depois, Garcia de Orta foi condenado “post-mortem” por judaísmo – os seus restos mortais foram exumados e os seus ossos queimados na fogueira.
Foi em 1580, o ano da morte, em Lisboa, do seu amigo Luís Vaz de Camões…
Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 355-369.
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 18
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 18
Camões: Embarca Engenho e Arte: “Ah! minha Dinamene! Assim deixaste”
Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!
Como já pera sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?
Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!
Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste?
Luís de Camões, “Lírica” (fixação do texto de Hernâni Cidade), Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 230.
Este soneto sobejamente conhecido expressa a profunda dor do sujeito poético pela perda de Dinamene, a sua amada, que morreu prematura e inesperadamente, a ponto de nem ter sido possível uma despedida: “Nem falar-te somente a dura Morte / Me deixou”.
Perante a separação definitiva, questiona o destino, o mar e a morte, que o privaram até mesmo de uma despedida, e realça que a saudade e o sofrimento causados por essa perda são tão intensos, que nenhuma tristeza parece suficiente para expressar a sua desolação, questionando-se se valerá a pena uma vida miserável, sem a sua amada.
Quem é Dinamene, aqui evocada pelo poeta?
São várias as interpretações que têm sido apresentadas “quanto à identidade deste nome, inclusivamente a de que corresponderia a uma das ninfas do mar, a que se referem vários escritores da Antiguidade”. Mas uma forte tradição biográfica de Camões, ainda que de contornos um pouco lendários, identifica-a como “uma jovem chinesa que teria perecido num naufrágio, no rio Mecom”.
No regresso de Macau a Goa, com escala em Malaca, Camões sofreu, de facto, um naufrágio, provavelmente perto do delta do rio Mecom, e perdeu quase tudo.
“Como escreveram os biógrafos antigos, Camões conseguiu salvar-se numa ‘tábua’, que tanto pode ter sido um bote como um pedaço de madeira convertido em jangada improvisada. Severim de Faria acrescentou que o Poeta tinha escapado a nado, rasgando as água com uma mão e segurando o manuscrito de ‘Os Lusíadas’ na outra” (Isabel Rio Novo).
E assim nasceu no imaginário nacional a figura heroica do Poeta, lutando para salvar uma obra que vale por uma literatura. Mas, neste “naufrágio triste e miserando”, como lhe chama na estância 128 do canto X, perdeu tudo o resto. Perdeu os bens que conseguira amealhar em Macau, onde tinha exercido as funções de Provedor dos Defuntos; perdeu o espólio dos defuntos à sua guarda; e perdeu a sua querida Dinamene, por quem chora neste soneto e em vários outros poemas…
Chegado, finalmente, a Goa, por volta de 1565 ou 1566, acabaria por ser acusado e condenado ao cárcere. Escreve Isabel Rio Novo que tudo indica que “não acreditaram que o naufrágio fosse a razão pela qual Camões não entregava os bens dos defuntos e por isso o prenderam”.
O Poeta ficou indignado com a injustiça. No meio de tantas agruras, só lhe resta a sua obra poética. E o desejo de a publicar.
A partir de agora, só pensa em regressar à pátria…
A Organização
Fontes: Porto Editora – “Dinamene na Infopédia” [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2025-02-07 09:16:47]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$dinamene
Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 387.
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 16
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 16
“O fogo que na branda cera ardia”
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!
Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.
Luís de Camões
Este soneto de Luís de Camões retrata o ardor do amor, comparando-o ao fogo que consome a cera.
O eu lírico expressa o desejo de “alcançar a luz que vence o dia”, num jogo semântico que explora “o fogo que na branda cera ardia” e a intensidade do “outro fogo do desejo”, que consome a sua alma.
Acontece que a inspiração para o poema resulta de um incidente do quotidiano. D. Guiomar de Blasfé, filha de D. Francisco Coutinho, o futuro 3.º Conde do Redondo, queimou os cabelos ao aproximar-se, descuidadamente, de uma vela ou, segundo uma outra versão, foi queimada no rosto por uma vela caída de um candelabro.
Camões dedicou ao acidente dois poemas célebres pelo seu tom humorístico, em que exalta a beleza da dama, “tão ardente e perigosa quanto a chama da vela”.
Para além do soneto, o outro poema é uma cantiga, em que o Poeta, face ao mote “Amor, que todos ofende, / teve, Senhora, por gosto, / que sentisse o vosso rosto / o que nas almas acende.”, escreveu a seguinte volta:
“Aquele rosto que traz
o mundo todo abrasado,
se foi da flama tocado,
foi porque sinta o que faz.
Bem sei que Amor se lhe rende;
Porém o seu prosuposto
Foi sentir o vosso rosto
O que nas almas acende.”
Não é difícil de imaginar o ambiente dos serões palacianos em que este tipo de poesia terá surgido. Nas palavras de Isabel Rio Novo, trata-se, de facto, “de poesias ligeiras ou de circunstância, que, tanto pelo estilo como pelas alusões que encerram, não seriam compreendidas fora desse meio ou não teriam interesse senão para os seus frequentadores.”
Poucos dias depois do aniversário do Poeta, que ocorreu no passado dia 23 de janeiro, celebramos o Camões da juventude. Camões a espalhar “Engenho e Arte” e humor pelos salões dos palácios de famílias importantes…
A Organização
Fontes:
Luís de Camões, “Obras Completas de Luís Vaz de Camões. II Volume – Lírica”, Lisboa, E-Primatur, 2019, pp. 170 e 99.
Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, p. 101.
Justino Mendes de Almeida, “O Humor Camoniano: Aspectos psicológicos na poesia de Camões”, disponível em https://repositorio.ual.pt/server/api/core/bitstreams/aa2b098b-4501-477b-a54e-0df15b7c3570/content, acedido em 24.01.2025.
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 17
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 17
“(…) um bicho da terra tão pequeno?”
(…) Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho da vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!
No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, I, 105-106
A narração n’”Os Lusíadas” principia com a armada de Vasco da Gama a meio da viagem (“in medias res”), já a chegar à Ilha de Moçambique, onde faz escala para se abastecer.
A partir daqui, assiste-se a um conjunto de atribulações, com ciladas, falsidades e traições que quase deitam tudo a perder, não fora a intervenção de Vénus.
Na Ilha de Moçambique, o chefe local, quando verifica, inspirado por Baco, que os Portugueses são cristãos, resolve destruí-los. E Gama, depois de ter sido atacado, traiçoeiramente, é enganado e recebe a bordo um piloto, com ordens para levar a armada a cair numa cilada.
Ao aproximarem-se da perigosa zona de Quíloa, Vénus afasta-os da costa por meio de “ventos contrários”, anulando, assim, a traição. O piloto mouro ainda faz outras tentativas, mas Vénus está atenta e impede que isso aconteça. A viagem continua para Norte e chegam à cidade de Mombaça, cujo rei fora avisado por Baco para os exterminar.
Face a tantas traições e a tantos perigos – ciladas, hostilidade disfarçada que ilude e alimenta esperanças –, o poeta não resiste a uma reflexão.
Termina o primeiro canto com uma consideração sobre a imprevisibilidade e a insegurança da vida e a fragilidade da condição do ser humano, “um bicho da terra tão pequeno”…, exposto a todos os perigos e incertezas e vítima indefesa do “Céu sereno” (I, 106).
Os perigos espreitam o ser humano (o herói), tão pequeno diante das forças da natureza, do poder da guerra e dos traiçoeiros enganos dos inimigos. Estamos no início da epopeia. Ver-se-á, no último canto, o décimo, até onde a ousadia, a coragem e o desejo de ir sempre mais além podem levar o “bicho da terra tão pequeno”…
Curiosamente, Camões repete este verso emblemático na canção “Junto de um seco, fero e estéril monte”, em que o sujeito poético reflete sobre a sua própria condição:
(…) Somente o Céu severo,
As Estrelas e o Fado sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recreiam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno. (…)
Quase cinco séculos passados, Camões continua intemporal, vivo e inspirador na análise da condição humana, na sua insegurança, fragilidade e contingência.
No século XVI e nos dias de hoje, Camões embarca Engenho e Arte!
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 15
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 15
Camões: Embarca Engenho e Arte – “O dia em que nasci moura e pereça”
O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o Mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Luís de Camões, “Lírica” (fixação de texto de Hernâni Cidade), Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 244.
Neste soneto, o sujeito poético amaldiçoa o dia em que nasceu e deseja que jamais se repita; mas, se, porventura, tal suceder, faz votos de que fique marcado por acontecimentos catastróficos, de cariz apocalíptico, para que todos saibam que esse “dia deitou ao Mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”.
Num registo autobiográfico, profundamente disfórico, sobressaem os sentimentos de desesperança total e até de revolta, face à desilusão, à frustração, à dor profunda do poeta, parafraseando, para o efeito, as lamentações do texto bíblico do “Livro de Job”.
Apesar de a autoria camoniana do soneto não reunir o consenso, apetece, imediatamente, estabelecer uma associação entre o Camões-sujeito e o Camões-objeto da sua poesia, trazendo à memória a vida turbulenta e sombria que a “fortuna” lhe ofereceu.
São as suas atribulações amorosas, os degredos em Ceuta e no Oriente, os ferimentos em combate e a perda do olho direito, os diversos cativeiros, os perigos dos mares e da guerra, a miséria sempre omnipresente, a falta de reconhecimento, o desalento, a doença e, mesmo no final da vida, o golpe existencial de Alcácer Quibir e o consequente domínio filipino, com a apagada e vil tristeza a abater-se sobre a nação e sobre ele próprio.
Mas este poema suscita outras questões no domínio da astronomia, a ponto de investigadores da área concluírem, partindo do soneto, que Camões terá nascido, precisamente, a 23 de janeiro de 1524.
Na primeira quadra, escreve o sujeito poético que o dia em que nasceu não deverá voltar mais ao mundo, mas, se isso acontecer, “eclipse nesse passo o Sol padeça”. Por outras palavras, que tal suceda, quando o sol regressar ao ponto inicial, depois de percorrer toda a eclíptica, e ele completar um ano de idade.
Esta pista levou investigadores da Universidade de Coimbra a aprofundarem uma ideia defendida, em 1940, por Mário Saa. Meteram mãos à obra e procuraram todos os eclipses visíveis em Portugal, em 1524 e 1525. Consultando os dados da agência espacial norte-americana NASA, a equipa apenas encontrou um nesse período, a 23 de janeiro de 1525. Reforçaram, então, a ideia de o poeta terá nascido um ano antes, ou seja, a 23 de janeiro de 1524, já lá vão 501 anos.
Sendo assim, na próxima quinta-feira, brindemos com Luís de Camões.
São os 501 anos deste génio do Engenho e Arte!
A Organização
Fonte: Filipa Almeida Mendes e Lusa, “Um soneto e um eclipse solar indicam a data de nascimento de Camões”, in “Público”, 12 de janeiro de 2024. Disponível em https://www.publico.pt/2024/01/12/ciencia/noticia/soneto-eclipse-solar-indicam-data-nascimento-camoes-2076646, acedido em 15/01/2025.